domingo, 27 de maio de 2012

Dos descobrimentos e da Arte de Pensar


“Mana Rita, me explica os descobrimentos. Como foi mesmo o início disso?”
Podia ter sido uma pergunta sobre raízes quadradas, como no dia anterior, ou um pedido de ajuda na análise de literatura em língua portuguesa. Podia ter sido uma qualquer pergunta sobre um qualquer tema. Um do qual eu até percebesse menos do que história. Um daqueles de que eu não percebo nada mesmo, como biologia ou físico-química. Mas não. De olhos meigos e sorriso nos lábios, a pergunta de Bem Dito (e sim, Bem Dito está de facto bem dito) era simples para ele. Era uma questão de lhe explicar factos históricos que, provavelmente, o professor, negligenciara em aula ou, que em detrimento de ir ajudar na machamba durante a manhã, haviam ficado por aprender. Uma pergunta que, na sua génese, deveria ser mais simples do que as ajudas a Geografia que tinha estado a dar nesse mesmo dia de manhã. Afinal, os descobrimentos, eu tinha estudado em detalhe na minha escolinha privada, no meu país de primeiro mundo, nos meus livros de folhas lustrosas, com os meus professores licenciados nas matérias e, nunca na vida, pegara eu no relevo Moçambicano ou nas questões climáticas desse país nas aulas. Mas, ainda assim, preferia a minha ignorância ao tentar explicar matérias das quais pouco percebia , a tentar pôr em palavras o que eram os descobrimentos. Como é que eu ia ser capaz de explicar os descobrimentos a um rapaz Moçambicano? Como é que eu, que sempre ouvira esta história em que o meu país era herói, agora, de repente, me sentia tão repugnada que só em pensar num modo de explicar tal, me estava a dar um nó?
“Mana Rita, eu sei que os Portugueses vieram cá. Mas não preocupa não. Nós cá já vendíamos escravos entre as tribos. Não foram só vocês.”
O meu silêncio prolongava-se. Ora… Os descobrimentos não começaram com os descobrimentos, isso é o que muita gente acha erradamente. Mas começaram com a tentativa de Portugal em expandir o seu domínio… Viajaram de Portugal para Ceuta, cujo paradeiro já era bem conhecido, numa primeira tentativa. Mas o sucesso só se deu quando os Portugueses partiram nas caravelas para descobrir África.
O sucesso? A minha linha de pensamentos ria-se de mim mesma. Chamar sucesso ao que aconteceu é quase como contar a história da segunda guerra mundial e decidir apelidar uma qualquer vitória Nazi de sucesso. Sim, foram sucessos militares, mas a utilização do termo é de um mau gosto repugnante. Sucesso para quem? Para os Quims e Zés da altura? Oooh Portugal agora é que é grande! Donos de Moçambique e Angola!! E nós na miséria na mesma, que o dinheiro é para quem pode, não é para quem quer. Ou ainda sucesso para Os Manéis e Tónes de hoje em dia, que gostam de rir nas aulas e suspirar: Nos descobrimentos é que era, quando eramos donos do Brasil e tínhamos ouro! Fosse agora assim e não havia crise!
E descobrir África?
Pois, acontece que enquanto em Portugal,  em História, damos a Antiguidade Clássica, a Época Medieval, os Descobrimentos e por aí em diante, em Moçambique dá-se a história do próprio país e realmente é ridículo falar de descobrimentos. Eles já lá estavam. Já havia história, cultura, pessoas… Que raio!, nós não fomos lá descobrir nada. O problema é que ver horizonte, para lá do nosso umbigo, é tarefa complicada.
“Não. Não é esse o problema Bem Dito. Estou só a tentar perceber como começar. É uma história complicada e não quero deixar nenhum detalhe importante de fora”
Por outras palavras, dá-me cinco minutos para eu perceber como é que falo deste tema sem me sentir uma idiota por nunca ter pensado nele. Como é que dediquei horas da minha vida a dissertar sobre os motivos pelos quais me incomoda que se alterem capas de livros quando são adaptados para o cinema, ou qual é a diferença lógica entre um chá e uma água com sabor, ou ainda sobre a idiotice de produzir batatas fritas com sabor a presunto (mais vale comer presunto se se quer o sabor de presunto, não?) e nunca parara para reflectir acerca de um tema tão estruturante e tão português: os descobrimentos.
Temos os Lusíadas e temos a Mensagem, temos o enaltecer dos marinheiros e das batalhas e não temos uma alma penada que pare e diga: “isso foi tudo muito importante mas escravizar e subjugar um povo é dificilmente motivo de orgulho.” Pelo menos para mim. Que estava ali sentada de sapatilhas de marca e camisola limpa, no meio de África, a trabalhar como voluntária e a sentir-me a criatura mais hipócrita da história ao olhar aquele rapaz de sapatos desfeitos e que andava a usar a mesma camisola desde que chegáramos em missão, há mais de duas semanas. Ir a África não faz de nós boas pessoas, não de todo. E naquele momento eu sentia-me tão inútil e pequena e talvez mesmo cruel. Porque, como qualquer um, quando dera essa matéria, vira-a da perspectiva dos vencedores, de uma perspectiva de neutralidade nula. E o problema é que se na segunda guerra mundial ganharam os “bons” para contar a história, neste caso os vencedores foram aqueles que oprimiram, que escravizaram e exterminaram. Aqueles que não tiveram problemas em instrumentalizar pessoas, nações inteiras, pelo seu bem pessoal, pelo seu ganho. E nem tudo foi mau, claro que não, e teve um contexto histórico, claro que sim. Mas o friozinho do meu estômago dizia-me que nem assim era desculpável tão atroz desumanidade, que nem assim era lógico que quando queríamos recordar a grandeza do nosso povo, invocássemos esta época. Porque se o melhor de ser português é pôr-se a si e ao seu país acima de tudo, acima de outros países, de outros povos, pelo seu ganho egoísta, então não tenho orgulho em ser portuguesa, porque muito antes disso vem o meu orgulho em ser humana, em ser uma criatura capaz de compaixão, de pensamento e de evolução e isto são conceitos que vão contra o que apelidam do melhor do meu país. O melhor do meu país foi a abolição da pena de morte, os Maias, o Fado e o Queijo da Serra. O melhor do meu país reina na nossa capacidade de sermos sublimes na simplicidade. Somos os melhores nisso. Os melhores num jogo que envolve só uma bola, os melhores nos petiscos simples, os melhores na arte de pegar em poucas palavras e pô-las a rimar de um modo que não parece humano. Somos os melhores nisso e disso eu consigo orgulhar-me. Mas de volta à Casa Família, um pequeno orfanato na cidade de Quelimane, em Moçambique, o meu Bem Dito continuava à espera de uma resposta muito menos complexa do que o mar de coisas que me toldavam a linha de pensamento.
“Ora, os descobrimentos começam no século XV durante o Reino de D. João I. Portugal, numa tentativa de expandir o seu domínio terrestre, parte além-mar para tentar descobrir novos mundos” o pé arrasta na terra, nervoso, formando círculos que demonstram a minha inquietação… Talvez, só talvez, eu consiga despejar a cronologia dos descobrimentos sem fazer qualquer julgamento. Nem se foi bom ou mau, nem se concordo ou se discordo. Só um conjunto de factos contra os quais não há argumentação possível. Cientificar o que não é científico… No fundo, despir a história do que a torna divertida mas, de certo modo, tal seria provavelmente o único modo de pintar esta história ao rapaz, sem ter um colapso nervoso ali no meio.
“Mas porque fizeram eles isso Mana Rita?” Ah, pois… E agora é que a coisa se torna complicada. Fizeram isso porque é da natureza humana achar-se dona do seu umbigo e do dos outros também. Por muito que tenham, nunca chega. Sempre foi assim e provavelmente sempre será. Podia ter dito isso mas sabia que não era bem essa a resposta que ele esperava. De olhos cerrados para não ver a reacção dele e tentando parecer o mais descontraída possível, expliquei-lhe “uma questão comercial. Por dinheiro. Vieram para aqui porque o que tinham lá não lhes chegava. Ainda hoje somos um bocadinho assim, não é? Mas pronto, vieram porque queriam mais. E aqui havia mais. E era fácil, aqui não existia a tecnologia que lá havia. Viemos para cá porque não nos queríamos meter com alguém do nosso tamanho, como Espanha ou Itália, mas como queríamos mais...”
“E ficaram cá até à guerra, n’é?”
Mais uma vez a resposta era simples. Sim. Ficamos cá até se instalar uma guerra entre o Ultramar e a Metrópole, guerra essa onde o meu avô lutou, não aqui mas em Goa. Onde atirou contra vocês porque gritaram pela vossa independência, como se não fosse um direito de qualquer um. Como se estivessem a desejar mais do que o que deviam, quando na realidade os gananciosos fomos nós. E depois deu-se uma revolução no meu país e deixámos-vos. Deixámos-vos tão desamparados, depois de tantos anos, que vocês explodiram numa guerra civil. Pior, guerra essa que é, provavelmente, o motivo pelo qual estamos aqui os dois sentados a conversar. Guerra essa que provavelmente te levou os pais e te deixou abandonado numa casa que nem quase telhado tem. Mas nada é simples nestes conceitos. Nada. E o pior é que na escola, na televisão, nos livros, foram simplificados a tal ponto que quando nos deparamos com a verdadeira magnitude do problema, nada parece fazer sentido. As histórias não podem ser as mesmas. Não de todo.
“Não exactamente. Ficamos cá até ao 25 de Abril, altura em que se deu uma revolução no meu país e nos retiramos do vosso território.”
Não sei o que com isto quero provar.
Provavelmente não quero provar nada mais do que o facto de, às vezes, tomarmos por garantidas coisas que de garantido pouco têm. Por vezes temos verdades dentro de nós, enquanto pessoas, enquanto povo, enquanto nação, que não são verdades. Que não são nada. São pensamentos que nos implantaram e a que nunca demos importância. Sim, porque aquilo que é importante é digno de uma reflexão e enquanto povo nunca pensamos nos descobrimentos. Nunca lhes demos importância, são poucos os que de nós que podem dizer: Eu parei e pensei nos descobrimentos. E aqueles que lhes dão uma desmesurada enfase hoje em dia, são também aqueles que nunca os pensaram. 
E desses eu tenho pena. 
Porque maior miséria do que a de não pensar, eu não conheço.

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