terça-feira, 29 de maio de 2012

Em defesa do ser-se mau


Bem e Mal.
Quando somos crianças tudo se resume a isto.
Nos contos infantis é tudo preto no branco; a bruxa contra a princesa, o pirata contra a criança perdida, a mulher-polvo contra a sereia. Tudo se resume a quem é bom e quem não é. A quem merece ser feliz para sempre e a quem não merece. E é esta a dicotomia que se espera que as crianças retirem destes contos de modo a tentarem ser boazinhas, a obedecerem aos pais e a tornarem-se seres humanos aptos à vida em sociedade e ditos normais.
 E a maioria retira mesmo. As meninas querem ser delicadas e doces como as princesas e os rapazes valentes, bravos e corajosos como os príncipes. Mas depois... Depois há as ovelhas negras. Como eu. E quem sabe até mesmo o leitor. Existe sempre um grupo pequenito de crianças que de mente atravessada encontram segundas leituras, ou leituras muito próprias, nos filmes e contos. Ora a minha leitura nunca foi a de bem versus mal em nenhuma destas histórias, principalmente nos filmes da Disney. A minha leitura foi sempre: Tenacidade versus Submissão. Claro que quando se tem três ou quatro anos é difícil explicar isto e as outras crianças acham-nos um bocadinho estranhas. “Mas gostas da bruxa má? Mas tu és má?” Mas deixem-me ver se agora com mais alguma, se bem que não muita, maturidade me explico melhor.
Nunca torci por aquele que era “bom” mas, isso sim,  por aquele que fazia pela vida. É que santa paciência, por que é que eu haveria de querer ser como a Bela Adormecida!? Ficar deitada à espera que um tipo qualquer me beijasse para acordar…? Desculpem mas a bruxa sempre tinha objectivos e lutava por eles. Assumia aquilo em que acreditava e levava tal até às últimas consequências. E se bem que os seus objectivos não fossem os mais nobres, ao menos morreu a tentar e isso, para mim, é muito mais lição de moral do que a da menina a cantar com corujas e a cozer bolinhos ou até a passar a restante hora de filme… adormecida. Acresce ainda o facto de que se a Bela Adormecida fosse apenas a Miss Simpatia Adormecida, ainda hoje lá estava a dormir… Ou então o caso da Branca de Neve. Submissa do início ao fim. O pai morre e pode herdar um reino? Pois fica caladinha que nem um rato enquanto a madrasta faz o que quer. Fica livre pela primeira vez em duas décadas? Vai limpar a casa de sete homens. É envenenada por uma maçã? É salva pelo beijo de um príncipe que nem nome tem e que nunca a viu antes de ela estar num caixão. Sim, esse momento estranho em que ninguém aponta o dedo ao príncipe que beija uma mulher que todos julgam morta (necrofilia!?) mas ninguém se lembra de sequer meditar acerca dos problemas de afirmação que a bruxa não teria para se sentir ameaçada pela mosquinha mal morta da rapariga que lavava as escadas, quando devia ser uma princesa por direito. Isso sim, é digno de dó. E não se pense que é apenas nestes casos tâo clássicos e tão Disney. Veja-se por exemplo A princesa e a ervilha – chega-se à mesquinhez de tornar a fragilidade feminina tão grande que o simples toque de uma ervilha pisa. Isso parece mais coisa de doença do que característica de realeza – é tornar o ser-se boa mulher como sinónimo de debilidade e necessidade de protecção. Por que é que a mulher que quer ser independente é, quase automaticamente, conotada com malvada!? E mesmo pegando noutros vilões clássicos, como por exemplo Frollo em o Corcunda de Notre Dame, uma personagem bem mais humana que Quasimodo ou Esmeralda (a quem dou o braço a torcer, garra não lhe faltava) verificamos o mesmo. Um homem que luta por aquilo que quer mesmo quando dividido entre aquilo que é a sua moralidade, a sua religião, os seus sentimentos, a sua sexualidade. Um homem só. E acima de tudo um homem. Aquela que, no filme, é a única personagem que não cai no arquétipo exagerado de bem ou mal puro, é apelidada rapidamente de demónio, quando é provavelmente a que mais nos pode ensinar sobre o significado de ser-se humano. Mas ao longo da história esse sempre foi o maior crime. Peguemos também no exemplo de Madame Tremaine, mais conhecida como Madrasta Má – é tão mais simples odiar um conceito quando nem nome tem – uma mulher que se propõe a qualquer meio para que as suas filhas tenham uma melhor vida. Claro que sabemos que os fins não justificam os meios, mas ainda assim: entre a futilidade de uma rapariga que quer ir ao baile pela beleza do príncipe, a idiotice de uma homem que decide a mulher com quem vai casar conjugando o factor número de sapato e uma dança num baile, é realmente a mãe disposta a tudo pelas filhas que vamos criticar? ? Ou Hades, em Hércules – pegando na história da Disney, porque este simples texto não chegava para descrever tudo aquilo que me irrita em Zeus na mitologia, a começar pelas diversas traições a Hera, e em Hera, a começar por culpar as amantes e não o marido infiel, - temos duas personagens: o irmão mais novo, renegado e desprezado pelo mais velho, um irmão imaturo, mas não menos imaturo que o irmão mais velho, e mesmo assim não somos capazes de ver que Hades não é mau. Hades é alguém que se conformou com o facto de nunca vir a ter o que quer e, de repente, vê ser entregue de bandeja ao sobrinho, aquilo com que sempre sonhou. E quando pensou que finalmente se vira livre de Hércules, este regressa. Os ciúmes são uma coisa má mas mais do que maus são característica humana.
É certo que todas estas personagens têm um contexto histórico e social, no momento em que foram criadas faziam sentido tais ideologias, mas o que me faz confusão é por que motivo hoje em dia pegamos nestas personagens e continuamos a aceitar a história na mesma perspectiva, quando o contexto mudou. O que nos impede de as deixas crescer, de deixar que a moral da história se renove? Por que continuamos a querer que as meninas sejam florzinhas de estufa e os meninos os maiores valentões de sempre? No fundo, aquilo que mais me choca é, é o facto de queremos que as crianças se identifiquem com os arquétipos de perfeição que são inatingíveis e desprezamos as personagens que realmente têm falhas, conteúdo e humanidade.

1 comentário:

  1. Aplauso, dos grandes e em pé.
    Pela enésima vez (e quantas sejam preciso).

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