terça-feira, 29 de maio de 2012

Em defesa do ser-se mau


Bem e Mal.
Quando somos crianças tudo se resume a isto.
Nos contos infantis é tudo preto no branco; a bruxa contra a princesa, o pirata contra a criança perdida, a mulher-polvo contra a sereia. Tudo se resume a quem é bom e quem não é. A quem merece ser feliz para sempre e a quem não merece. E é esta a dicotomia que se espera que as crianças retirem destes contos de modo a tentarem ser boazinhas, a obedecerem aos pais e a tornarem-se seres humanos aptos à vida em sociedade e ditos normais.
 E a maioria retira mesmo. As meninas querem ser delicadas e doces como as princesas e os rapazes valentes, bravos e corajosos como os príncipes. Mas depois... Depois há as ovelhas negras. Como eu. E quem sabe até mesmo o leitor. Existe sempre um grupo pequenito de crianças que de mente atravessada encontram segundas leituras, ou leituras muito próprias, nos filmes e contos. Ora a minha leitura nunca foi a de bem versus mal em nenhuma destas histórias, principalmente nos filmes da Disney. A minha leitura foi sempre: Tenacidade versus Submissão. Claro que quando se tem três ou quatro anos é difícil explicar isto e as outras crianças acham-nos um bocadinho estranhas. “Mas gostas da bruxa má? Mas tu és má?” Mas deixem-me ver se agora com mais alguma, se bem que não muita, maturidade me explico melhor.
Nunca torci por aquele que era “bom” mas, isso sim,  por aquele que fazia pela vida. É que santa paciência, por que é que eu haveria de querer ser como a Bela Adormecida!? Ficar deitada à espera que um tipo qualquer me beijasse para acordar…? Desculpem mas a bruxa sempre tinha objectivos e lutava por eles. Assumia aquilo em que acreditava e levava tal até às últimas consequências. E se bem que os seus objectivos não fossem os mais nobres, ao menos morreu a tentar e isso, para mim, é muito mais lição de moral do que a da menina a cantar com corujas e a cozer bolinhos ou até a passar a restante hora de filme… adormecida. Acresce ainda o facto de que se a Bela Adormecida fosse apenas a Miss Simpatia Adormecida, ainda hoje lá estava a dormir… Ou então o caso da Branca de Neve. Submissa do início ao fim. O pai morre e pode herdar um reino? Pois fica caladinha que nem um rato enquanto a madrasta faz o que quer. Fica livre pela primeira vez em duas décadas? Vai limpar a casa de sete homens. É envenenada por uma maçã? É salva pelo beijo de um príncipe que nem nome tem e que nunca a viu antes de ela estar num caixão. Sim, esse momento estranho em que ninguém aponta o dedo ao príncipe que beija uma mulher que todos julgam morta (necrofilia!?) mas ninguém se lembra de sequer meditar acerca dos problemas de afirmação que a bruxa não teria para se sentir ameaçada pela mosquinha mal morta da rapariga que lavava as escadas, quando devia ser uma princesa por direito. Isso sim, é digno de dó. E não se pense que é apenas nestes casos tâo clássicos e tão Disney. Veja-se por exemplo A princesa e a ervilha – chega-se à mesquinhez de tornar a fragilidade feminina tão grande que o simples toque de uma ervilha pisa. Isso parece mais coisa de doença do que característica de realeza – é tornar o ser-se boa mulher como sinónimo de debilidade e necessidade de protecção. Por que é que a mulher que quer ser independente é, quase automaticamente, conotada com malvada!? E mesmo pegando noutros vilões clássicos, como por exemplo Frollo em o Corcunda de Notre Dame, uma personagem bem mais humana que Quasimodo ou Esmeralda (a quem dou o braço a torcer, garra não lhe faltava) verificamos o mesmo. Um homem que luta por aquilo que quer mesmo quando dividido entre aquilo que é a sua moralidade, a sua religião, os seus sentimentos, a sua sexualidade. Um homem só. E acima de tudo um homem. Aquela que, no filme, é a única personagem que não cai no arquétipo exagerado de bem ou mal puro, é apelidada rapidamente de demónio, quando é provavelmente a que mais nos pode ensinar sobre o significado de ser-se humano. Mas ao longo da história esse sempre foi o maior crime. Peguemos também no exemplo de Madame Tremaine, mais conhecida como Madrasta Má – é tão mais simples odiar um conceito quando nem nome tem – uma mulher que se propõe a qualquer meio para que as suas filhas tenham uma melhor vida. Claro que sabemos que os fins não justificam os meios, mas ainda assim: entre a futilidade de uma rapariga que quer ir ao baile pela beleza do príncipe, a idiotice de uma homem que decide a mulher com quem vai casar conjugando o factor número de sapato e uma dança num baile, é realmente a mãe disposta a tudo pelas filhas que vamos criticar? ? Ou Hades, em Hércules – pegando na história da Disney, porque este simples texto não chegava para descrever tudo aquilo que me irrita em Zeus na mitologia, a começar pelas diversas traições a Hera, e em Hera, a começar por culpar as amantes e não o marido infiel, - temos duas personagens: o irmão mais novo, renegado e desprezado pelo mais velho, um irmão imaturo, mas não menos imaturo que o irmão mais velho, e mesmo assim não somos capazes de ver que Hades não é mau. Hades é alguém que se conformou com o facto de nunca vir a ter o que quer e, de repente, vê ser entregue de bandeja ao sobrinho, aquilo com que sempre sonhou. E quando pensou que finalmente se vira livre de Hércules, este regressa. Os ciúmes são uma coisa má mas mais do que maus são característica humana.
É certo que todas estas personagens têm um contexto histórico e social, no momento em que foram criadas faziam sentido tais ideologias, mas o que me faz confusão é por que motivo hoje em dia pegamos nestas personagens e continuamos a aceitar a história na mesma perspectiva, quando o contexto mudou. O que nos impede de as deixas crescer, de deixar que a moral da história se renove? Por que continuamos a querer que as meninas sejam florzinhas de estufa e os meninos os maiores valentões de sempre? No fundo, aquilo que mais me choca é, é o facto de queremos que as crianças se identifiquem com os arquétipos de perfeição que são inatingíveis e desprezamos as personagens que realmente têm falhas, conteúdo e humanidade.

domingo, 27 de maio de 2012

Dos descobrimentos e da Arte de Pensar


“Mana Rita, me explica os descobrimentos. Como foi mesmo o início disso?”
Podia ter sido uma pergunta sobre raízes quadradas, como no dia anterior, ou um pedido de ajuda na análise de literatura em língua portuguesa. Podia ter sido uma qualquer pergunta sobre um qualquer tema. Um do qual eu até percebesse menos do que história. Um daqueles de que eu não percebo nada mesmo, como biologia ou físico-química. Mas não. De olhos meigos e sorriso nos lábios, a pergunta de Bem Dito (e sim, Bem Dito está de facto bem dito) era simples para ele. Era uma questão de lhe explicar factos históricos que, provavelmente, o professor, negligenciara em aula ou, que em detrimento de ir ajudar na machamba durante a manhã, haviam ficado por aprender. Uma pergunta que, na sua génese, deveria ser mais simples do que as ajudas a Geografia que tinha estado a dar nesse mesmo dia de manhã. Afinal, os descobrimentos, eu tinha estudado em detalhe na minha escolinha privada, no meu país de primeiro mundo, nos meus livros de folhas lustrosas, com os meus professores licenciados nas matérias e, nunca na vida, pegara eu no relevo Moçambicano ou nas questões climáticas desse país nas aulas. Mas, ainda assim, preferia a minha ignorância ao tentar explicar matérias das quais pouco percebia , a tentar pôr em palavras o que eram os descobrimentos. Como é que eu ia ser capaz de explicar os descobrimentos a um rapaz Moçambicano? Como é que eu, que sempre ouvira esta história em que o meu país era herói, agora, de repente, me sentia tão repugnada que só em pensar num modo de explicar tal, me estava a dar um nó?
“Mana Rita, eu sei que os Portugueses vieram cá. Mas não preocupa não. Nós cá já vendíamos escravos entre as tribos. Não foram só vocês.”
O meu silêncio prolongava-se. Ora… Os descobrimentos não começaram com os descobrimentos, isso é o que muita gente acha erradamente. Mas começaram com a tentativa de Portugal em expandir o seu domínio… Viajaram de Portugal para Ceuta, cujo paradeiro já era bem conhecido, numa primeira tentativa. Mas o sucesso só se deu quando os Portugueses partiram nas caravelas para descobrir África.
O sucesso? A minha linha de pensamentos ria-se de mim mesma. Chamar sucesso ao que aconteceu é quase como contar a história da segunda guerra mundial e decidir apelidar uma qualquer vitória Nazi de sucesso. Sim, foram sucessos militares, mas a utilização do termo é de um mau gosto repugnante. Sucesso para quem? Para os Quims e Zés da altura? Oooh Portugal agora é que é grande! Donos de Moçambique e Angola!! E nós na miséria na mesma, que o dinheiro é para quem pode, não é para quem quer. Ou ainda sucesso para Os Manéis e Tónes de hoje em dia, que gostam de rir nas aulas e suspirar: Nos descobrimentos é que era, quando eramos donos do Brasil e tínhamos ouro! Fosse agora assim e não havia crise!
E descobrir África?
Pois, acontece que enquanto em Portugal,  em História, damos a Antiguidade Clássica, a Época Medieval, os Descobrimentos e por aí em diante, em Moçambique dá-se a história do próprio país e realmente é ridículo falar de descobrimentos. Eles já lá estavam. Já havia história, cultura, pessoas… Que raio!, nós não fomos lá descobrir nada. O problema é que ver horizonte, para lá do nosso umbigo, é tarefa complicada.
“Não. Não é esse o problema Bem Dito. Estou só a tentar perceber como começar. É uma história complicada e não quero deixar nenhum detalhe importante de fora”
Por outras palavras, dá-me cinco minutos para eu perceber como é que falo deste tema sem me sentir uma idiota por nunca ter pensado nele. Como é que dediquei horas da minha vida a dissertar sobre os motivos pelos quais me incomoda que se alterem capas de livros quando são adaptados para o cinema, ou qual é a diferença lógica entre um chá e uma água com sabor, ou ainda sobre a idiotice de produzir batatas fritas com sabor a presunto (mais vale comer presunto se se quer o sabor de presunto, não?) e nunca parara para reflectir acerca de um tema tão estruturante e tão português: os descobrimentos.
Temos os Lusíadas e temos a Mensagem, temos o enaltecer dos marinheiros e das batalhas e não temos uma alma penada que pare e diga: “isso foi tudo muito importante mas escravizar e subjugar um povo é dificilmente motivo de orgulho.” Pelo menos para mim. Que estava ali sentada de sapatilhas de marca e camisola limpa, no meio de África, a trabalhar como voluntária e a sentir-me a criatura mais hipócrita da história ao olhar aquele rapaz de sapatos desfeitos e que andava a usar a mesma camisola desde que chegáramos em missão, há mais de duas semanas. Ir a África não faz de nós boas pessoas, não de todo. E naquele momento eu sentia-me tão inútil e pequena e talvez mesmo cruel. Porque, como qualquer um, quando dera essa matéria, vira-a da perspectiva dos vencedores, de uma perspectiva de neutralidade nula. E o problema é que se na segunda guerra mundial ganharam os “bons” para contar a história, neste caso os vencedores foram aqueles que oprimiram, que escravizaram e exterminaram. Aqueles que não tiveram problemas em instrumentalizar pessoas, nações inteiras, pelo seu bem pessoal, pelo seu ganho. E nem tudo foi mau, claro que não, e teve um contexto histórico, claro que sim. Mas o friozinho do meu estômago dizia-me que nem assim era desculpável tão atroz desumanidade, que nem assim era lógico que quando queríamos recordar a grandeza do nosso povo, invocássemos esta época. Porque se o melhor de ser português é pôr-se a si e ao seu país acima de tudo, acima de outros países, de outros povos, pelo seu ganho egoísta, então não tenho orgulho em ser portuguesa, porque muito antes disso vem o meu orgulho em ser humana, em ser uma criatura capaz de compaixão, de pensamento e de evolução e isto são conceitos que vão contra o que apelidam do melhor do meu país. O melhor do meu país foi a abolição da pena de morte, os Maias, o Fado e o Queijo da Serra. O melhor do meu país reina na nossa capacidade de sermos sublimes na simplicidade. Somos os melhores nisso. Os melhores num jogo que envolve só uma bola, os melhores nos petiscos simples, os melhores na arte de pegar em poucas palavras e pô-las a rimar de um modo que não parece humano. Somos os melhores nisso e disso eu consigo orgulhar-me. Mas de volta à Casa Família, um pequeno orfanato na cidade de Quelimane, em Moçambique, o meu Bem Dito continuava à espera de uma resposta muito menos complexa do que o mar de coisas que me toldavam a linha de pensamento.
“Ora, os descobrimentos começam no século XV durante o Reino de D. João I. Portugal, numa tentativa de expandir o seu domínio terrestre, parte além-mar para tentar descobrir novos mundos” o pé arrasta na terra, nervoso, formando círculos que demonstram a minha inquietação… Talvez, só talvez, eu consiga despejar a cronologia dos descobrimentos sem fazer qualquer julgamento. Nem se foi bom ou mau, nem se concordo ou se discordo. Só um conjunto de factos contra os quais não há argumentação possível. Cientificar o que não é científico… No fundo, despir a história do que a torna divertida mas, de certo modo, tal seria provavelmente o único modo de pintar esta história ao rapaz, sem ter um colapso nervoso ali no meio.
“Mas porque fizeram eles isso Mana Rita?” Ah, pois… E agora é que a coisa se torna complicada. Fizeram isso porque é da natureza humana achar-se dona do seu umbigo e do dos outros também. Por muito que tenham, nunca chega. Sempre foi assim e provavelmente sempre será. Podia ter dito isso mas sabia que não era bem essa a resposta que ele esperava. De olhos cerrados para não ver a reacção dele e tentando parecer o mais descontraída possível, expliquei-lhe “uma questão comercial. Por dinheiro. Vieram para aqui porque o que tinham lá não lhes chegava. Ainda hoje somos um bocadinho assim, não é? Mas pronto, vieram porque queriam mais. E aqui havia mais. E era fácil, aqui não existia a tecnologia que lá havia. Viemos para cá porque não nos queríamos meter com alguém do nosso tamanho, como Espanha ou Itália, mas como queríamos mais...”
“E ficaram cá até à guerra, n’é?”
Mais uma vez a resposta era simples. Sim. Ficamos cá até se instalar uma guerra entre o Ultramar e a Metrópole, guerra essa onde o meu avô lutou, não aqui mas em Goa. Onde atirou contra vocês porque gritaram pela vossa independência, como se não fosse um direito de qualquer um. Como se estivessem a desejar mais do que o que deviam, quando na realidade os gananciosos fomos nós. E depois deu-se uma revolução no meu país e deixámos-vos. Deixámos-vos tão desamparados, depois de tantos anos, que vocês explodiram numa guerra civil. Pior, guerra essa que é, provavelmente, o motivo pelo qual estamos aqui os dois sentados a conversar. Guerra essa que provavelmente te levou os pais e te deixou abandonado numa casa que nem quase telhado tem. Mas nada é simples nestes conceitos. Nada. E o pior é que na escola, na televisão, nos livros, foram simplificados a tal ponto que quando nos deparamos com a verdadeira magnitude do problema, nada parece fazer sentido. As histórias não podem ser as mesmas. Não de todo.
“Não exactamente. Ficamos cá até ao 25 de Abril, altura em que se deu uma revolução no meu país e nos retiramos do vosso território.”
Não sei o que com isto quero provar.
Provavelmente não quero provar nada mais do que o facto de, às vezes, tomarmos por garantidas coisas que de garantido pouco têm. Por vezes temos verdades dentro de nós, enquanto pessoas, enquanto povo, enquanto nação, que não são verdades. Que não são nada. São pensamentos que nos implantaram e a que nunca demos importância. Sim, porque aquilo que é importante é digno de uma reflexão e enquanto povo nunca pensamos nos descobrimentos. Nunca lhes demos importância, são poucos os que de nós que podem dizer: Eu parei e pensei nos descobrimentos. E aqueles que lhes dão uma desmesurada enfase hoje em dia, são também aqueles que nunca os pensaram. 
E desses eu tenho pena. 
Porque maior miséria do que a de não pensar, eu não conheço.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

I - Entre flores e obituários


          O que ele mais gostava nela era o modo como ela tinha sempre um meio sorriso na cara, daqueles que não são de felicidade mas, pura e simplesmente, um traço de simpatia, de personalidade dócil e meiga. E o modo como ela estava sempre em silêncio, o modo como só falava quando tinha algo para dizer, de como as palavras nunca eram desperdiçadas e como cada sílaba dela guardava todo um mundo de informações importantes. Coisas a reter, a guardar e nunca esquecer. Coisas que eram só dela e agora também eram um bocadinho dele. E se somos o que pensamos, quando ela partilhava o seu mundo, este passava a ser um bocadinho dele também
E ele gostava disso.
O que ele mais gostava nela era o modo como ela era diferente e não se importava de o ser. O modo como havia sempre flores entrelaçadas no seu cabelo despenteado. “Cada flor tem um significado" segredara-lhe, ela uma vez, "hoje uso uma peónia: significa timidez, achei que era apropriado para o primeiro dia de aulas." Ele sorriu-lhe e concordou. A peónia era simplesmente estranha. Demasiado grande e demasiado rosa, nada tímida mesmo mas ele conhecia-a há anos e saber, finalmente,  porque motivo ela estava sempre coroada com as mais estranhas plantas, deixou-o estático.         
Mais um bocadinho dela que era agora dele também.      
Ele também gostava do modo como eles se conheciam desde sempre e, mesmo assim, parecia que havia sempre mais uma coisinha a descobrir sobre ela, camadas e camadas dela para revelar por entre sorrisos tímidos e confissões inesperadas. O modo como ele era o único amigo dela e, talvez a única pessoa no mundo que a entendia, nem que fosse só um bocadinho.       
O que ele mais gostava nela, era o modo como conseguiam passar uma tarde juntos sem trocar uma palavra. O modo como ela ficava sentada a observá-lo enquanto ele recortava meticulosamente os obituários da semana, sem o questionar. Sem o achar louco ou demente. "O meu maior medo é ser esquecido. É morrer sem que ninguém se lembre de mim, ser só mais um nome no obituário. Como não sei se existe alguém para se lembrar destas pessoas, lembro-me eu. Leio os obituários, recorto-os e arquivo-os por datas. E todos os dias leio os obituários do mesmo dia dos anos anteriores -" dissera-lhe ele num suspiro, uma vez, quando tinham quinze anos. Ela não pareceu estranhar, acenou e o meio sorriso iluminou-lhe a cara - "Se morreres uso flores de sabugueiro no cabelo." Na altura ele não percebeu, encolheu os ombros, e continuou os seus recortes matutando na estranheza daquela rapariga mas agora já entende. Flores de sabugueiro significam que uma certa tristeza nos pode matar.        
O que ela gostava mais nele era o modo como ele não fazia perguntas. O modo como sabia que ela precisava de espaço e do seu mundo. O modo como ele olhava para ela de forma atrapalhada e justificava o que estava a fazer num ápice, como se a opinião dela fosse sagrada. Fazia-a sentir-se importante. O que ela mais gostava nele era o modo como ele tinha sempre os olhos agarrados ao céu, como se perder tempo a olhar para algo mundano como o chão, o fizesse desperdiçar um momento de sonho, de magia, só seu.        
Ela gostava da maneira como ele nunca sorria, a não ser quando o fazia genuinamente. Não era um rapaz de falsas simpatias ou que causasse grandes empatias. Mas sorria para ela, como se ela fosse digna da sua alegria.        
O que ela mais gostava nele era o modo como ele sabia que ela nunca seria dele, porque ela só podia ser de si própria e isso já era trabalho a tempo inteiro. O modo como ele sabia que ela tinha de ser livre e, mesmo assim, não se ia embora. Ela gostava de saber que ele era areia e ela era maré, ora estava ora recuava, ora calma ora turbulenta, e ele estava sempre lá como areia, como praia, como porto de abrigo.Ela gostava do modo como ele a deixava ser flor de laranjeira e cravo branco, o modo como ele sabia que ela era uma acácia amarela e não a forçava a ser rosa vermelha.*      
O que ela mais gostava nele era o modo como tudo era perfeito entre eles, como tudo funcionava em cadência de relógio suíço, meticulosamente acertado, para que o ritmo de ambos estivesse sempre na mais perfeita harmonia.



* Flor de Laranjeira - Virgindade; Cravo Branco - Ingenuidade; Acácia Amarela - Amor Secreto; Rosa Vermelha - Amor assumido/ Paixão.

domingo, 22 de abril de 2012

O privilégio de casar

 Não tenho nada contra o casamento mas não percebo a obsessão com casar, muito sinceramente, e venho neste texto reflectir acerca de uma ideia que acho muito mais interessante e propositada: a abolição do casamento para heterossexuais, homossexuais e o que mais vos aprouver de ver casado.
                Eu sei que parece uma premissa algo estranha mas, em primeiro lugar, parece-me que faria muito bem à população não se poder casar. Gerou-se todo um complexo à volta do que é estar casado e o que não é estar casado quando, na realidade, o casamento deveria ser apenas o passo seguinte e natural numa relação… Mas deixem-me que vos diga que véus de 3 metros e bolos de 15 andares são tudo menos naturais, assim como todas aquelas mesquinhezas de contas conjuntas e ‘o que é meu é dele ou o que é meu é meu ou ficará ele ofendido se eu quiser manter tudo em separado?’ ou ainda o clássico ‘adopto o apelido dele ou não!?’. Está na altura de descomplexar esta coisa toda e voltar mais às origens! O casamento foi de tal modo destruído por preconceitos e ideias descabidas, que se perdeu o casamento per si e portanto acho que é necessário cessar com esta trapalhada toda para olhar em redor e perceber o que é mesmo esta complicação toda de casar.
 Quer construir um futuro a dois? E não quer deixar de celebrar isso com a família do seu mais que tudo? Compre uma cabra ou quatro galinhas e ofereça ao futuro sogro que sempre é algo mais útil. E não, não estou com isto a querer ser retrógrada e a falar de dotes mas pura e simplesmente de descomplicar o que é simples: quer um símbolo da união? Compre uma casa a dois, que símbolo maior pode querer!? E já imagino os críticos, isso não simboliza nada, afinal eu posso comprar uma casa com o meu melhor amigo que isso não significa que estamos casados mas a realidade é que eu também me posso casar com o meu melhor amigo e isso não significa que estejamos casados, bastava ele ser estrangeiro e estar a tentar adquirir nacionalidade Portuguesa que tínhamos um motivo para casar e ninguém nos podia impedir…
                Obviamente entendo que isto pode chocar as vozes mais conservadoras mas na realidade até pode ser visto como uma defesa do casamento tradicional. Por um lado se não houver casamentos também não existem divórcios. Uma vez que um dos principais problemas dos conservadores são as mutações que o casamento está a sofrer (como por exemplo a permissão a casais do mesmo sexo de contraírem matrimónio), nada o tornará mais imutável do que ser banido – ficará congelado no tempo, para sempre. A santidade ficará para a posteridade, sem o risco de casamentos relâmpagos adolescentes ou crises de meia-idade que levam a cometer loucuras e a destruírem as bases do casamento. Mas como é importante referir todo este problema que levanto põe-se apenas para com os casamentos civis – nenhum problema com os casamentos religiosos, a única alteração a estes seria o despir o casamento católico de qualquer relevância jurídica. Qualquer um seria livre de, na privacidade de sua casa e no conforto do seu lar, fazer o que quisesse… Do mesmo modo que eu sou livre para criar a “religião da Rita” neste momento e decidir que toda a gente deve ter um polvo como animal de estimação na minha religião, os Católicos seriam livres para continuar a casar na Igreja, tal não teria era qualquer vinculação com a lei, porque o casamento não existiria.
                Outro argumento que prevejo ser utilizado é o de que o casamento é um direito e o Estado não nos pode retirar um direito mas a realidade é que uma reflexão mais profunda nos levaria rapidamente a concluir que o casamento não é um direito mas, isso sim, um privilégio que o Estado nos concede. Um direito levaria a que o Estado não tivesse qualquer intervenção na minha escolha de parceiro e apenas protegesse o nosso contrato. A realidade é que o Estado tem uma intervenção e uma regulação a tal ponto interventiva acerca deste tópico, que eu só posso concluir que o casamento é, de facto, um privilégio. Basta pensarmos no casamento homossexual que foi debatido em praça pública como se de uma mera clausula se tratasse e não como se os sentimentos da pessoas que estivessem em jogo ou, indo a algo mais profundo ainda, temos o caso da poligamia – e não falo desta como uma consequência de crenças religiosas. A realidade é que existem famílias que acreditam no poliamor, como uma forma de expressão de sexualidade e interesse romântico, e não vêem sequer a discussão de o casamento poligâmico ser aberta. A mim parece-me que o casamento civil é formulado como um direito quando na realidade não mais é do que um privilégio que, sinceramente, é supérfluo.
                Claro que surge automaticamente também o problema do que fazer àqueles que já contrariaram matrimónio, matéria complexa a nível legal. Afinal seria justo anular-lhes o casamento? Não, não o seria. Proponho assim que estes se mantenham casados e dentro de uma geração ou duas o problema dissipar-se-ia com o renovar geracional. Dissipar-se ia com o avançar do tempo para acabar por, naturalmente, morrer formalmente, porque materialmente custa-me vê-lo como instituição ainda viva, ainda moderna, ainda actual, ainda plausível, ainda…
                Em suma, o que afirmo é que ao contrário do que acontecia há algumas décadas atrás, o casamento já não é um compromisso sério assumido por duas pessoas que pretendem, de facto, construir um projecto comum. É algo efémero e um rito de passagem, que ganhou como evolução natural o divórcio. A durabilidade alterou-se, o conceito sofreu uma mutação e o instituto em si tornou-se caduco. As protecções oferecidas deixaram de fazer sentido ou podem ser substituídas por documentos particulares com o mesmo efeito. A relação familiar criada pelo casamento ao ser vista como paralela à relação existente entre um pai e um filho ou a de dois irmãos, perdeu o lugar neste século.  

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Nem todos os Zombies são maus!

Se definirmos zombie como aquele que regressa há vida depois de morto, podemos classificar Jesus como um Zombie. Extremamente ofensivo, eu sei – mas remeto para o título do texto… Afinal, nem todos os Zombies são maus!
Depois de longos anos a estudar em instituições Católicas, enquanto mente naturalmente céptica e com um acentuado travo de ironia, não consigo parar de me questionar o que leva alguém a acreditar em Deus. O que leva alguém a crer que o seu Futuro, o seu Passado e o seu Presente estão dependentes de um acordo tácito com Jesus - uma personagem histórica que viveu há mais de dois mil anos. Que morreu pelos nossos pecados – apesar de na prática segundo a doutrina da mui nobre Igreja Católica podermos ir para o Inferno pelos nossos pecados… Mas bem, confesso que Teologia não é de todo a minha área, e não pretendo entrar em questões técnicas. A minha questão, na sua raiz mais básica, é pura e simplesmente o que é que o comum dos mortais vê de atractivo na crença em detrimento da falta desta. Aquilo que chamamos vulgarmente de ateísmo apesar de partilhar da opinião que esse é um daqueles termos que faz alguma confusão. Rotular-me como ateísta é como rotular-me de não preta, asiática ou praticante de futebol. Não definimos uma pessoa por aquilo que ela não é.
Ou talvez sim. Porque a questão de Deus é especial.
O meu primeiro grande problema com Deus, não é Deus per se mas o seu clube de fãs. Fascina-me essa comunidade de pessoas que pegam na Bíblia e levam os seus textos até às últimas consequências… As metáforas existentes têm valor e não nego que possam ser utilizadas como um modo de ensinar valores saudáveis às crianças (e até mesmo a alguns adultos) - a raiz da religião em si não é má, simplesmente não entendo como é que em pleno século XXI se leva a sério alguém que tem como lei um livro que vai de serpentes falantes a mulheres criadas das costelas de homens, sem mencionar o meu preferido: quando o filho do primeiro homem e mulher na terra decide casar vai à aldeia vizinha (espera, esses vieram da costela de quem mesmo!?).
Os meus problemas com a claque de Deus não terminam aqui porém. O constante assédio também me perturba. Ofertas de lugares no céu, venda de Bíblias à porta de casa e ainda as queridas senhoras em paragens de autocarro que olham para mim com ares de súplica suspirando como tenho cara de quem precisa de Deus. Preciso é de paciência! Mas não julgo o todo pela parte ou a parte pelo todo. Sei que nem todos os Católicos se comportam assim, mas falta uma atitude, uma mudança daqueles que sabem viver em respeito pelos descrentes…
E depois chegamos há organização em si. Á Igreja Católica enquanto instituição que prega a pobreza, a obediência e a castidade num sorriso irónico que revela o antigo (mas pertinente) ditado “faz o que eu digo, não faças o que eu faço”. A pobreza pode ser aplicada em alguns casos, mas como o exemplo vai de baixo para cima é normal que acabe por cair – chama-se gravidade, uma pequenina lei da física – se calhar está na altura do exemplo vir de lá de cima de quem realmente tem poder. Mas quem pode censurar o Papa, eu também, acho os sapatos Prada vermelhos muito mais interessantes que umas simples sandálias de couro…
 Outro dos principais motivos que, pessoalmente, me faz questionar a Igreja é falta de igualdade – uma instituição fundada em honra de um Homem tão nobre, tão humanitário, tão revolucionário como Cristo, deixou-se corromper. Perdeu-se. Aquele homem que pregava de terra em terra, que quebrava as injustiças, sentir-se-ia, provavelmente, envergonhado de ver que o seu nome é associado a uma organização em que os genitais ainda contam como um atestado de validade, em que se protege as aparências em vez do que realmente conta – os valores. Em que a evolução foi estanque porque ninguém, ninguém!, conseguiu levá-la a crescer porque ceder a pressões é mais fácil do que lutar contra elas.  A Igreja cresceu para se tornar aquilo contra que Jesus pregava. E mesmo assim os fiéis não conseguem parar e questionar. E, se o ensinamento mais básico de cristo foi o amor, a acção mais básica foi questionar os dogmas à sua volta. Com confiança no seu “pai” e pedindo aos outros que o seguissem, mas não é mesmo Cristo que termina questionando o seu próprio pai: “Por que me abandonaste?”.
E no entanto ignorar é mais fácil. Ser conduzido numa dança de redundâncias é mais fácil do que sair desse círculo e questionar o que está a acontecer. E esse é o problema da religião hoje em dia, não só da Católica, mas em geral. Estar integrado numa religião é fácil. É um facilitismo. Menos inquietações, menos perguntas, menos noites mal dormidas. E no entanto provavelmente isto não é estar integrado numa religião, porque estar integrado no que quer que seja implica pensar, implica passarmos a fazer parte do todo e não, sermos arrastados pelo todo. Não é ficarmos num estado de dormência tal, que deixamos de pensar, pensar é viver. Voltando ao título do texto, estes crentes, que nem sabem muito bem naquilo que crêem tornam-se zombies que se arrastam pelos meandros sombrios de algo que desconhecem.
E não, estes crentes, estes zombies, também não são maus. Não entro no jogo idiota de bem versus mal é uma luta caduca e somos todos humanos, somos todos bons e somos todos maus. Não temos é de ser todos carneirinhos. Podemos pensar, questionar e crescer dentro ou fora da religião, com consciência das nossas escolhas e das razões que nos levam a optar.