sexta-feira, 4 de maio de 2012

I - Entre flores e obituários


          O que ele mais gostava nela era o modo como ela tinha sempre um meio sorriso na cara, daqueles que não são de felicidade mas, pura e simplesmente, um traço de simpatia, de personalidade dócil e meiga. E o modo como ela estava sempre em silêncio, o modo como só falava quando tinha algo para dizer, de como as palavras nunca eram desperdiçadas e como cada sílaba dela guardava todo um mundo de informações importantes. Coisas a reter, a guardar e nunca esquecer. Coisas que eram só dela e agora também eram um bocadinho dele. E se somos o que pensamos, quando ela partilhava o seu mundo, este passava a ser um bocadinho dele também
E ele gostava disso.
O que ele mais gostava nela era o modo como ela era diferente e não se importava de o ser. O modo como havia sempre flores entrelaçadas no seu cabelo despenteado. “Cada flor tem um significado" segredara-lhe, ela uma vez, "hoje uso uma peónia: significa timidez, achei que era apropriado para o primeiro dia de aulas." Ele sorriu-lhe e concordou. A peónia era simplesmente estranha. Demasiado grande e demasiado rosa, nada tímida mesmo mas ele conhecia-a há anos e saber, finalmente,  porque motivo ela estava sempre coroada com as mais estranhas plantas, deixou-o estático.         
Mais um bocadinho dela que era agora dele também.      
Ele também gostava do modo como eles se conheciam desde sempre e, mesmo assim, parecia que havia sempre mais uma coisinha a descobrir sobre ela, camadas e camadas dela para revelar por entre sorrisos tímidos e confissões inesperadas. O modo como ele era o único amigo dela e, talvez a única pessoa no mundo que a entendia, nem que fosse só um bocadinho.       
O que ele mais gostava nela, era o modo como conseguiam passar uma tarde juntos sem trocar uma palavra. O modo como ela ficava sentada a observá-lo enquanto ele recortava meticulosamente os obituários da semana, sem o questionar. Sem o achar louco ou demente. "O meu maior medo é ser esquecido. É morrer sem que ninguém se lembre de mim, ser só mais um nome no obituário. Como não sei se existe alguém para se lembrar destas pessoas, lembro-me eu. Leio os obituários, recorto-os e arquivo-os por datas. E todos os dias leio os obituários do mesmo dia dos anos anteriores -" dissera-lhe ele num suspiro, uma vez, quando tinham quinze anos. Ela não pareceu estranhar, acenou e o meio sorriso iluminou-lhe a cara - "Se morreres uso flores de sabugueiro no cabelo." Na altura ele não percebeu, encolheu os ombros, e continuou os seus recortes matutando na estranheza daquela rapariga mas agora já entende. Flores de sabugueiro significam que uma certa tristeza nos pode matar.        
O que ela gostava mais nele era o modo como ele não fazia perguntas. O modo como sabia que ela precisava de espaço e do seu mundo. O modo como ele olhava para ela de forma atrapalhada e justificava o que estava a fazer num ápice, como se a opinião dela fosse sagrada. Fazia-a sentir-se importante. O que ela mais gostava nele era o modo como ele tinha sempre os olhos agarrados ao céu, como se perder tempo a olhar para algo mundano como o chão, o fizesse desperdiçar um momento de sonho, de magia, só seu.        
Ela gostava da maneira como ele nunca sorria, a não ser quando o fazia genuinamente. Não era um rapaz de falsas simpatias ou que causasse grandes empatias. Mas sorria para ela, como se ela fosse digna da sua alegria.        
O que ela mais gostava nele era o modo como ele sabia que ela nunca seria dele, porque ela só podia ser de si própria e isso já era trabalho a tempo inteiro. O modo como ele sabia que ela tinha de ser livre e, mesmo assim, não se ia embora. Ela gostava de saber que ele era areia e ela era maré, ora estava ora recuava, ora calma ora turbulenta, e ele estava sempre lá como areia, como praia, como porto de abrigo.Ela gostava do modo como ele a deixava ser flor de laranjeira e cravo branco, o modo como ele sabia que ela era uma acácia amarela e não a forçava a ser rosa vermelha.*      
O que ela mais gostava nele era o modo como tudo era perfeito entre eles, como tudo funcionava em cadência de relógio suíço, meticulosamente acertado, para que o ritmo de ambos estivesse sempre na mais perfeita harmonia.



* Flor de Laranjeira - Virgindade; Cravo Branco - Ingenuidade; Acácia Amarela - Amor Secreto; Rosa Vermelha - Amor assumido/ Paixão.

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